17/07/2007

Uma viagem no verde - J. J. Letria

Acordei com a palavra água
a dançar-me na boca. Tive sede, muita sede,
e fui beber. O dia, lá fora, estava azul
e tinha o tamanho de um rio
ou de uma cidade fantástica, e sorria.

O sorriso do dia é igual ao do sol.
É largo e branco. Tem dentro
os frutos doces da calma das manhãs,
e se for Verão são capazes de matar
a fome e a sede que têm os bichos,
que têm os homens, que têm as casas.

As casas? Também têm sede, uma sede
branca como a cal dos muros
que arde nos lábios e queima a garganta
que fala e que canta, que diz azul
e sonha outras cores, outros sítios;
uma sede que arrasta outra sede
e se veste de mar para fingir
que a não tem, que não quer saber dela.

Visita-me agora um pássaro e diz-me: estou
doente do fumo e da pressa do voo.
Quero um ramo alto para fazer poiso
e só encontro telhados, antenas de televisão,
cidades com tosse, nuvens tristes, aviões
carrancudos nas estradas do céu.

É um pássaro bonito de asas largas
e penas cor de arco-íris. Gostava de ser
um pássaro assim, eu que também
não gosto do fumo nem da pressa do voo.
Fica poisado no meu dedo a falar-me
do mapa das coisas que tem na cabeça,
a cantar-me as cantigas de vento
que traz na ponta do bico, a dizer
que o Inverno é um sopro gelado
que magoa o sol e os ossos das casas
e enregela a casca das árvores
e as escamas brilhantes no dorso dos peixes.

Para mim o Inverno é não estar ninguém
em casa quando a gente volta
das terras quentes da beira do mar
com a boca a saber a morangos silvestres.

O pássaro sabe os segredos da sombra
das estátuas quietas nos jardins
mas não os conta a ninguém. Leva-os
guardados na bagagem do voo
e diz-me adeus lá de cima, empurrando
uma nuvem de fumo com a ponta da asa,
riscando o silêncio da noite
com a música que aprendeu a voar.

Como se chama? Que nome é que tem?
Vejo-o partir e nem lhe pergunto.
Há-de voltar quando for tempo, há-de voltar
na estação das ondas mansas trazendo notícias
dos bandos que cantam por cima do mar.

Depois de água, digo pedra
e na pedra vejo os nomes antigos
de reis e princesas, de magos e bruxas,
de cavaleiros andantes que andam cansados
das guerras já feitas, das por fazer,
das que moram nos livros da história,
das que deixam sinais na lembrança.

Andam tristes os bichos da terra
por verem crescer cidades sem sol
sobre as pedras esquecidas,
perdidas no tempo com tudo por contar.
«Vamos salvar o que resta das pedras!» —
dizem os bichos da terra, sentados
em círculo à volta do fogo, e eu oiço-os
falar e oiço-os sonhar e dou-lhes razão,
razão que sobra para os ajudar.

Depois da água e da pedra, digo fogo
e fico a tremer, não de frio, mas de medo,
com medo de ver a floresta ardida, a casa
queimada, o cereal em cinza, o pão
por fazer. Oiço sirenes, gritos na noite
e volto a tremer com medo do fogo, da chama
que chama mais fogo, mais fogo. Chega a água
e apaga o lume. Saltam da toca os bichos da terra
e fazem uma roda contentes, por verem
a seiva a correr, a floresta de novo
a cantar com árvores velhas, sábias e firmes
dançando belas canções de embalar.

Cai uma lágrima do rosto da lua
e é branca e limpa como um floco de neve.
Que dor a faz chorar? «Anda inquieto,
triste, zangado, e quem sofre é a paz!»
Na rima que faz, razão não lhe falta.

Entretém-se o poeta com esta lua redonda,
cansada de noites e noites no centro do céu
a servir de candeia contra a escuridão.
Que se guerreiem não gosta, faz-lhe doer
o seu rosto de lua, o círculo branco
das coisas que sente, das coisas que sabe.

Está lá em cima poisada há tanto, tanto
tempo que já se esqueceu da idade que tem,
dos nomes que teve nos livros antigos
dos povos que deram a forma do arado,
ao fogo, ao ferro e à roda. É mãe das marés
e gémea dos ventos, companheira das águas,
vizinha de sombras e dos vulcões. Anda agora
aflita por ver ferros em lugar de abraços.
E chora como só as luas sabem chorar:
lágrimas brancas como pérolas que chegam
à terra e se tornam crateras fundas
para guardarmos os sonhos melhores.
Apago a luz logo que a noite vem e fico a olhá-la,
triste por não poder tocar-lhe.

No rio que passa perto de mim
queixa-se, azul, um peixe pequeno. Diz:
é o óleo que mata cardumes, cavalos marinhos,
que suja os corais, as algas, as praias.
Falas iguais têm outros peixes, pequenos e grandes,
Azuis ou vermelhos. Sofrem a mesma dor:
uma dor de água turva, que faz arder
os olhos e deixa nas guelras
um gosto amargo que sabe a doença.
Tens razão, pequeno peixe azul
da profundeza do mar.

Vejo um barco à vela que leva crianças
brincando na proa e molhos de sonhos
tapados com panos de linho no meio do convés.
Sabe histórias do rio e do mar
e só tem pena do tempo que passou,
sentido por não poder navegar. Segue
a rota do peixe debaixo da onda,
e quando divide a espuma em metades iguais
parece um deus antigo, vindo de um continente
perdido no oceano das lendas.
Quero ir neste barco, mas não posso.
Só posso sonhar que vou. As viagens que faço
são sempre assim: sonhadas, sonhadas,
como se nunca mais acabassem,
como se nunca chegassem a começar.

Já disse água, azul, fogo e pedra.
Depois disse seiva, pássaro e lua.
Estas palavras são o meu alimento
e a minha memória. É com elas que vivo,
que moro e que brinco. O que sou é isto:
um duende-poeta, um gnomo-cantor
que sabe o tudo e o nada da vida das coisas
e se afunda nelas até perceber
o que são, o que querem, o que sofrem.

Nasci da água ou do vento, pouco importa.
Mal acordo, bebo o sumo da aurora,
a água que sobra das estrelas. A minha
casa é uma árvore gigante, cercada de verde
até onde a floresta acaba e o céu começa.
As palavras que digo dão corpo
às coisas que penso, e o que penso é
uma vontade grande de não ver morrer
a planta, o rio, a ave, a memória branca
que há dentro das pedras.

Duende-poeta é o que sou. Nunca fui bobo
de corte nenhuma. Saio do esconderijo
que tenho secreto debaixo de um ramo
e dou os bons-dias à Primavera, aceno
com o meu gorro de folhas frescas
para os amigos que faço por toda a parte.

Quiseram caçar-me, pôr-me enjaulado
Num jardim zoológico, mas eu escapei sempre,
que um duende-poeta não morre nas redes
de quem o persegue. Gnomo-cantor é o que eu sou,
e o meu canto é verde como o dos arbustos jovens
à beira das dunas, à boca do mar.
Tenho tão pouco, quase nada para dar:
só esta maneira de fazer poesia a falar.

Gosto dos bichos, das sementes, das pedras
raras que há nos abrigos da noite. Que mal
é que tem? Sou um duende-poeta, e as lembranças
que tenho não são de ontem, são de amanhã,
do tempo que as estrelas me dizem
que ainda está para chegar, que as aves
me contam que não pode tardar. E se às vezes
rimo a falar é por saber a música salgada
das ondas bravas do mar.


Não me podem apanhar, que eu sou tudo
aquilo que vejo e que amo: a floresta,
a duna, o rio, a maré, a seara de luz,
o galope do vento num areal feito de prata.

Sou irmão do homem quando o homem
é irmão daquilo que eu amo. Se não for,
nem tempo perco a estender-lhe a mão.


Como sou um duende-poeta, acordo
com sede de sol, de água e de espuma
e uma flor azul a bater imensa no coração.




José Jorge Letria
Uma Viagem no Verde
Lisboa, Vega, 1989

adaptação

1 comentário:

Sara disse...

Eu amo a natureza e gosto de ir para o campo e relaxar. Estou pensando em ir para a Argentina para passar alguns dias em Buenos Aires e alguns dias no campo. você sabe Aluguel buenos aires e na província? obrigado