17/07/2007

As lágrimas brancas da figueira - José Vultões Sequeira

Como já era costume, outro dia encontrámo-nos debaixo da figueira, andáramos dentro da vala, enorme como uma floresta de beterrabas e agriões, onde desapareciam os nossos pés, depois lembrámo-nos das histórias do Jara e fomos para lá.
— Então, contas-nos outra história? — perguntou a Lídia.
— Outra história…
— Sim, outra história da figueira!
— Está bem, mas parece-me que ela hoje dormiu mal e não vai gostar…
— Mas, a gente vai cantar-lhe uma cantiga para a pôr bem disposta…
— Uma cantiga?
— Sim, uma cantiga que a minha avó me ensinou, mas só a canto se tu nos contares mais uma história…
— Está bem… se a figueira estiver de acordo…
O Jara olhou para a figueira, a figueira parecia estar mesmo adoentada, não tinha o brilho verde do costume e os seus figos já estavam a perder o ar viçoso; no chão, alguns estavam caídos, misturados às ervas, que iam ganhando uma cor amarela.
— É o Outono, sabem, é o Outono que se avizinha. Ela, nestas alturas, põe-se de mau humor, mas vamos a ver...
E o Jara, pé ante pé, foi direito ao largo tronco da figueira, encostou-lhe o ouvido, tacteou-lhe a pele rugosa e com a boca muito perto dela segredou-lhe de uma maneira muito misteriosa e meiga.
Nós só olhávamos e começávamos a compreender por que é que a figueira contava histórias ao Jara... Passados momentos voltou, em silêncio sentou-se junto de nós, cruzou as pernas e disse para a Lídia:
— Vá, canta lá, então, a canção que a tua avó te ensinou.
A Lídia pôs-se rosada, os olhos dela pareceram-se com a água a brincar com os raios do sol, olhou para um e para outro e sorriu-se.
— Está bem, então, escutem.

Os meus figos
filhos
da água do amor
estremecem o meu coração
quando de um rio longe
os vejo nos meus olhos


— Ah! Mas que bonita cantiga! — exclamámos nós. — É como a água do riozinho a regar a figueira, às vezes até parece que ela se transforma em lágrimas, a acariciar-lhe os pés do tronco.
— É, é — disse o Jara. — Agora vou contar-vos a história, ouçam:

Havia um menino que todas as manhãs vinha aos figos, vinha muito devagarinho, e pé ante pé lá ia ele figueira acima. A figueira não dizia nada, olhava o menino. O menino, era figos maduros, era figos verdes, partia e tornava a partir raminhos tenros que estavam a crescer: era um menino muito descuidado. Um dia subiu um ramo, subiu outro ramo, distraído e contente, comia um figo maduro, torcia um figo verde, partia um raminho, pisava outro, até que, depois de estar de barriga satisfeita, se preparou para descer, mas glutão e distraído como era, subiu tanto, tanto, que até as casas cá em baixo lhe pareciam pequeninas.
O menino olhou, olhou e começou a chorar, e tanto chorou que a figueira lhe perguntou:
— Porque é que choras?
O menino olhou, tornou a olhar, não viu ninguém e pensou lá para com ele que tinha sido impressão, mas lá tornou a voz:
— Porque é que choras, meu menino?
O menino, com o coração a tremer, tornou a olhar, a olhar, e a voz mesmo em frente dele:
— Não me vês? Sou um galhozinho como outros que tu já partiste, sou a boca desta figueira.
O menino ficou admirado e pensou lá para com ele: “A boca desta figueira! Afinal, a figueira, também tem boca.”
— Sim — continuou a figueira — sim, menino porque é que choras?
— Eu, eu estou a chorar por estar muito alto e não ser capaz de descer.
— Estás muito alto?
— Sim, sim — disse o menino olhando as casas lá muito em baixo — mas, tu também estás a chorar lágrimas brancas.
— As feridas que tu me fizeste doem muito.
— Eu fiz-te feridas?
— Sim, menino, fizeste-me feridas, partiste-me tantos raminhos, que eu não sei se morrerei...
E nisto, a figueira encolheu-se, encolheu-se tanto que quando o menino deu por ele, estava já quase rente ao chão.
Depois, o menino, quando se viu no chão, não disse nada, olhou a figueira, olhou, estendeu a sua mãozita a tremer e pousou-a durante muito tempo no seu tronco largo e a figueira estremeceu, estremeceu e as lágrimas de água branca desapareceram-lhe.

O Jara calou-se, olhou a grande figueira já cheia de sombra, a grande figueira a querer abraçar a terra e as ervas por baixo da sua larga copa e depois, então, disse tão devagar que mal se ouviu:
— Se calhar é por isso que a figueira fala…
Nós não dissemos nada, ouvíamos a folhagem como se nos embalasse, e o mundo fosse um baloiço onde o nosso coração se encostasse, cansado de brincar.
— Olhem o riozinho, qualquer dia cresce…
— Sim, sim, e vamos pôr nele barcos grandes…

José Vultões Sequeira
As histórias da figueira
Lisboa, A Regra do Jogo – Edições, 1985

(excerto)

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